"A literatura e o cinema sempre andaram de mãos-dadas, e os melhores filmes, geralmente, são baseados em biografias".
Três dos cinco concorrentes ao Oscar de melhor filme estreou sexta-feira, 4, no Brasil: "Ray", "Em Busca da Terra do Nunca" e "Sideways - Entre Umas e Outras". Dois deles são biografias cinematográficas: o primeiro conta a história do cantor e compositor americano Ray Charles; o segundo, a do escritor escocês J.M. Barrie, autor da peça "Peter Pan". Como a imprensa já destacou, este parece ser o ano das cinebiografias no Oscar. Além desses dois filmes, há ainda "O Aviador", sobre o magnata americano Howard Hughes, favorito ao Oscar de melhor filme que estréia semana que vem."Ray" e "Terra do Nunca" são interessantes justamente porque exemplificam dois tipos opostos de tratamento biográfico no cinema. "Ray" é uma biografia horizontal: o filme tenta dar conta da figura de Ray Charles retratando vários períodos de sua vida, da infância até a velhice, com destaque para seu auge criativo. "Olga" seria o similar nacional. "Terra do Nunca", ao contrário, é uma biografia vertical: concentra-se em um período específico da vida de J.M. Barrie - a criação de "Peter Pan", inspirada no encontro com uma viúva e seus filhos órfãos -, com a esperança de que ele seja suficiente para iluminar todo o personagem. No cinema brasileiro, o mesmo foi feito em "Madame Satã". "Ray" nunca ousa competir em criatividade com seu retratado. A direção de Taylor Hackford ("O Advogado do Diabo") tem a caretice de um telefilme. Ele dá o mesmo peso à música genial de Charles, a seu vício em heroína e a suas escapadas conjugais. "Terra do Nunca" faz a opção mais arriscada de tentar se igualar a Barrie em poder de invenção.
O diretor Marc Forster ("A Última Ceia") concentra seu filme no confronto entre a realidade e a imaginação do escritor, deixando em segundo plano a relação dele com a viúva. Como toda biografia cinematográfica, o sucesso dos filmes depende muito dos protagonistas. E, nesse quesito também, os dois são completamente diferentes. Favorito ao Oscar de melhor ator, Jamie Foxx investe na imitação virtuosística dos muitos trejeitos de Charles, que morreu em junho passado e, portanto, continua presente na memória dos fãs. Também indicado ao prêmio, Johnny Depp incorpora Barrie de maneira mais contida, uma escolha apropriada para um escritor que viveu entre 1860 e 1937 e do qual o público sabe pouco. Mas, afinal,qual dos filmes é melhor como biografia? Não tem como errar: "Em Busca da Terra do Nunca". Sem ser brilhante, o filme consegue não apenas retratar a personalidade de seu retratado como evocar algo de sua mente criativa, com a ajuda da sutileza de Depp. "Ray" tem o mérito de apresentar o mundo de Charles aos não-iniciados, mas sua alma só pode ser encontrada nos números musicais (aí é fácil: o filme usou gravações originais ou novas feitas pelo próprio Charles). O mesmo se dá com a atuação supervalorizada de Foxx: a aparência pode ser considerada perfeita, mas a essência não está lá. Ele está melhor em "Colateral", filme pelo qual concorre ao Oscar de coadjuvante.Além disso, "Ray" cai em alguns sentimentalismos baratos, especialmente no final (não é apenas na estrutura que ele remete a "Olga"). Mesmo quando gravava country ou era acompanhado por uma orquestra de cordas, o cantor nunca fez músicas tão cafonas quanto certas passagens do filme. Isso significa que o tratamento biográfico de "Ray" é pior do que o de "Terra do Nunca"? De forma alguma.
Quer dizer apenas que o cineasta Marc Forster trabalhou melhor com os elementos que tinha em mãos do que seu colega Taylor Hackford. Não existe fórmula melhor ou pior para uma biografia cinematográfica, como aliás para nenhum tipo de filme. Há belas cinebiografias clássicas, como "Bird", de Clint Eastwood, sobre o saxofonista Charlie Parker, outro gênio da música americana. Por outro lado, o filme que inaugurou a era moderna no cinema, "Cidadão Kane", nada mais era do que a história disfarçada do magnata William Hearst. Mas lembrar desses dois filmes para falar das estréias da semana é até covardia.
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